O fogo que na branda cera ardia
O fogo que na branda cera ardia,
Vendo o rosto gentil que na alma vejo,
Se acendeu de outro fogo do desejo,
Por alcançar a luz que vence o dia.
Como de dois ardores se incendia,
Da grande impaciência fez despejo,
E, remetendo com furor sobejo,
Vos foi beijar na parte onde se via.
Ditosa aquela flama, que se atreve
Apagar seus ardores e tormentos
Na vista do que o mundo tremer deve!
Namoram-se, Senhora, os Elementos
De vós, e queima o fogo aquela neve
Que queima corações e pensamentos.
Luís de Camões
Este
soneto de Luís de Camões retrata o ardor do amor, comparando-o ao fogo que
consome a cera.
O eu
lírico expressa o desejo de “alcançar a luz que vence o dia”, num jogo
semântico que explora “o fogo que na branda cera ardia” e a intensidade
do “outro fogo do desejo”, que consome a sua alma.
Acontece que a inspiração para o poema resulta
de um incidente do quotidiano. D. Guiomar de Blasfé, filha de D. Francisco Coutinho,
o futuro 3.º Conde do Redondo, queimou os cabelos ao aproximar-se,
descuidadamente, de uma vela ou, segundo uma outra versão, foi queimada no
rosto por uma vela caída de um candelabro.
Camões dedicou ao acidente dois poemas
célebres pelo seu tom humorístico, em que exalta a beleza da dama, “tão ardente
e perigosa quanto a chama da vela”.
Para além do soneto, o outro poema é uma
cantiga, em que o Poeta, face ao mote “Amor, que todos ofende, / teve, Senhora,
por gosto, / que sentisse o vosso rosto / o que nas almas acende.”, escreveu a
seguinte volta:
“Aquele rosto que traz
o mundo todo abrasado,
se foi da flama tocado,
foi porque sinta o que faz.
Bem sei que Amor se lhe rende;
Porém o seu prosuposto
Foi sentir o vosso rosto
O que nas almas acende.”
Não é difícil de imaginar o ambiente dos
serões palacianos em que este tipo de poesia terá surgido. Nas palavras de
Isabel Rio Novo, trata-se, de facto, “de poesias ligeiras ou de circunstância,
que, tanto pelo estilo como pelas alusões que encerram, não seriam
compreendidas fora desse meio ou não teriam interesse senão para os seus
frequentadores.”
Poucos dias depois do aniversário do Poeta, que
ocorreu no passado dia 23 de janeiro, celebramos o Camões da juventude. Camões
a espalhar “Engenho e Arte” e humor pelos salões dos palácios de famílias
importantes…
Fontes: Luís de Camões, “Obras Completas de Luís Vaz de Camões. II
Volume – Lírica”, Lisboa, E-Primatur, 2019, pp. 170 e 99.
Isabel Rio Novo, “Fortuna, Caso, Tempo e Sorte – Biografia de
Luís Vaz de Camões”, Lisboa, Contraponto, 2024, p. 101.
Justino
Mendes de Almeida, “O Humor Camoniano: Aspectos psicológicos na poesia de
Camões”, disponível em https://repositorio.ual.pt/server/api/core/bitstreams/aa2b098b-4501-477b-a54e-0df15b7c3570/content,
acedido em 24.01.2025.
A Organização
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