“O dia em que nasci moura
e pereça”
O dia
em que nasci moura e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar,
Não torne mais ao Mundo, e, se tornar,
Eclipse nesse passo o sol padeça.
A luz
lhe falte, o céu se lhe escureça,
Mostre o Mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.
As
pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o Mundo já se destruiu.
Ó
gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao Mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!
Luís de Camões, Lírica (fixação de texto de Hernâni Cidade), Lisboa, Círculo de Leitores, 1980, p. 244.
Neste
soneto, o sujeito poético amaldiçoa o dia em que nasceu e deseja que jamais se
repita; mas, se, porventura, tal suceder, faz votos de que fique marcado por
acontecimentos catastróficos, de cariz apocalíptico, para que todos saibam que
esse “dia deitou ao Mundo a vida / Mais desgraçada
que jamais se viu!”.
Num registo autobiográfico, profundamente
disfórico, sobressaem os sentimentos de desesperança total e até
de revolta, face à desilusão, à frustração, à dor profunda do poeta,
parafraseando, para o efeito, as lamentações do texto bíblico do Livro de Job.
Apesar
de a autoria camoniana do soneto não reunir o consenso, apetece, imediatamente,
estabelecer uma associação entre o Camões-sujeito e o Camões-objeto da sua
poesia, trazendo à memória a vida turbulenta e sombria que a “fortuna” lhe
ofereceu.
São
as suas atribulações amorosas, os degredos em Ceuta e no Oriente, os ferimentos
em combate e a perda do olho direito, os diversos cativeiros, os perigos dos
mares e da guerra, a miséria sempre omnipresente, a falta de reconhecimento, o
desalento, a doença e, mesmo no final da vida, o golpe existencial de Alcácer
Quibir e o consequente domínio filipino, com a apagada e vil tristeza a
abater-se sobre a nação e sobre ele próprio.
Mas
este poema suscita outras questões no domínio da astronomia, a ponto de
investigadores da área concluírem, partindo do soneto, que Camões terá nascido,
precisamente, a 23 de janeiro de 1524.
Na
primeira quadra, escreve o sujeito poético que o dia em que nasceu não deverá
voltar mais ao mundo, mas, se isso acontecer, “eclipse nesse passo o Sol
padeça”. Por outras palavras, que tal suceda, quando o sol regressar ao ponto
inicial, depois de percorrer toda a eclíptica, e ele completar um ano de idade.
Esta
pista levou investigadores da Universidade de Coimbra a aprofundarem uma ideia
defendida, em 1940, por Mário Saa. Meteram mãos à obra e procuraram todos os
eclipses visíveis em Portugal, em 1524 e 1525. Consultando os dados da agência
espacial norte-americana NASA, a equipa apenas encontrou um nesse período, a 23
de janeiro de 1525. Reforçaram, então, a ideia de o poeta terá nascido um ano
antes, ou seja, a 23 de janeiro de 1524, já lá vão 501 anos.
Sendo
assim, na próxima quinta-feira, brindemos com Luís de Camões.
São os 501 anos deste génio do Engenho e Arte!
Fonte: Filipa Almeida Mendes e Lusa, “Um soneto e um eclipse solar indicam a data de nascimento de Camões”, in “Público”, 12 de janeiro de 2024. Disponível em https://www.publico.pt/2024/01/12/ciencia/noticia/soneto-eclipse-solar-indicam-data-nascimento-camoes-2076646, acedido em 15/01/2025.
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