Despedidas em Belém: “Por perdidos
as gentes nos julgavam…”
[…] Em tão longo caminho e duvidoso
Por perdidos as gentes nos julgavam,
As mulheres cum choro piadoso,
Os homens com suspiros que arrancavam.
Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso
Amor mais desconfia, acrecentavam
A desesperação e frio medo
De já nos não tornar a ver tão cedo.
Qual vai dizendo: – «Ó filho, a quem
eu tinha
Só pera refrigério e doce emparo
Desta cansada já velhice minha,
Que em choro acabará, penoso e amaro,
Porque me deixas, mísera e mesquinha?
Porque de mi te vás, o filho caro,
A fazer o funéreo encerramento
Onde sejas de pexes mantimento?»
Qual em cabelo: – «Ó doce e amado
esposo,
Sem quem não quis Amor que viver
possa,
Porque is aventurar ao mar iroso
Essa vida que é minha e não é vossa?
Como, por um caminho duvidoso,
Vos esquece a afeição tão doce nossa?
Nosso amor, nosso vão contentamento,
Quereis que com as velas leve o vento?»
[…] Nós outros, sem a vista
alevantarmos
Nem a mãe, nem a esposa, neste estado,
Por nos não magoarmos, ou mudarmos
Do propósito firme começado,
Determinei de assi nos embarcarmos,
Sem o despedimento costumado,
Que, posto que é de amor usança boa,
A quem se aparta, ou fica, mais magoa.
Luís de Camões, “Os Lusíadas”, IV, 89-91; 93
Ainda
a propósito dos 500 anos da morte de Vasco da Gama, que ocorreu no último dia
24 de dezembro, impõe-se uma breve visita à grandeza heroica do seu feito como
capitão-mor da armada que, pela primeira vez, ligou a Europa à Índia.
Comecemos
pela partida, a 8 de julho de 1497, um sábado. Uns cento e setenta homens,
entre soldados e marinheiros, aparelharam “a alma pera a morte” (IV, 86),
comungando e pedindo a proteção de Deus, e, depois, dirigem-se em procissão da capela
de Nossa Senhora de Belém para os batéis, que os conduziriam às três caravelas.
“A
gente da cidade” (IV, 88) enche o areal, num ambiente tenso e sombrio. São as
despedidas de quem parte “pera buscar do mundo novas partes.” (IV, 85).
“Por
perdidos as gentes nos julgavam” – diz Vasco da Gama. E, entre a dor mais
atroz, surgem
“As
mulheres cum choro piadoso,
Os
homens com suspiros que arrancavam.
Mães,
Esposas, Irmãs, que o temeroso
Amor
mais desconfia, acrecentavam
A
desesperação e frio medo
De já
nos não tornar a ver tão cedo.”
Neste
ambiente na Praia das Lágrimas, como lhe chamavam à época, Vasco da Gama, para evitar males maiores,
toma uma decisão:
“Determinei
de assi nos embarcarmos,
Sem o
despedimento costumado.”
Mas
este é apenas o peso inicial. Com a viagem no alto-mar, surgiam os enjoos, a
ansiedade e o pânico do desconhecido, novos climas e doenças assustadoras,
fenómenos naturais tenebrosos, tempestades, “naufrágios, perdições de toda a
sorte” (V, 44). E também a fome e a sede e os encontros e desencontros com os
povos indígenas e os ataques e outros acidentes…
No
canto V, Vasco da Gama resume ao rei de Melinde – e a cada um de nós – todos
estes tormentos:
“Ora
imagina agora quão coitados
Andaríamos
todos, quão perdidos,
De
fomes, de tormentas quebrantados,
Por
climas e por mares não sabidos!” (V, 70)
A
viagem da armada de Gama até Calecute constitui um marco histórico, com um
notável impacto aos mais diversos níveis. Mas teve um preço muito elevado,
nomeadamente, em termos humanos.
Num
tom épico-lírico, Fernando Pessoa imortalizaria, em pleno século XX, a grandeza
de toda esta gesta com o poema “Mar Português” (in “Mensagem”):
“Ó mar
salgado, quanto do teu sal
São
lágrimas de Portugal!
Por te
cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos
filhos em vão rezaram!
Quantas
noivas ficaram por casar
Para
que fosses nosso, ó mar!
Valeu a
pena? Tudo vale a pena
Se a
alma não é pequena.
Quem
quer passar além do Bojador
Tem que
passar além da dor.
Deus ao
mar o perigo e o abismo deu,
Mas
nele é que espelhou o céu.”
Vale
a pena ouvir – e cantar – este poema, acompanhando Mafalda Arnauth e os “Milladoiro”. O tema faz parte do álbum "A Quinta das Lágrimas" (2008).
A Organização
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