terça-feira, 14 de janeiro de 2025

V CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE CAMÕES


Despedidas em Belém: “Por perdidos as gentes nos julgavam…”

[…] Em tão longo caminho e duvidoso

Por perdidos as gentes nos julgavam,

As mulheres cum choro piadoso,

Os homens com suspiros que arrancavam.

Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso

Amor mais desconfia, acrecentavam

A desesperação e frio medo

De já nos não tornar a ver tão cedo.

 

Qual vai dizendo: – «Ó filho, a quem eu tinha

Só pera refrigério e doce emparo

Desta cansada já velhice minha,

Que em choro acabará, penoso e amaro,

Porque me deixas, mísera e mesquinha?

Porque de mi te vás, o filho caro,

A fazer o funéreo encerramento

Onde sejas de pexes mantimento?»

 

Qual em cabelo: – «Ó doce e amado esposo,

Sem quem não quis Amor que viver possa,

Porque is aventurar ao mar iroso

Essa vida que é minha e não é vossa?

Como, por um caminho duvidoso,

Vos esquece a afeição tão doce nossa?

Nosso amor, nosso vão contentamento,

Quereis que com as velas leve o vento?»

 

[…] Nós outros, sem a vista alevantarmos

Nem a mãe, nem a esposa, neste estado,

Por nos não magoarmos, ou mudarmos

Do propósito firme começado,

Determinei de assi nos embarcarmos,

Sem o despedimento costumado,

Que, posto que é de amor usança boa,

A quem se aparta, ou fica, mais magoa.

Luís de Camões, “Os Lusíadas”, IV, 89-91; 93

Ainda a propósito dos 500 anos da morte de Vasco da Gama, que ocorreu no último dia 24 de dezembro, impõe-se uma breve visita à grandeza heroica do seu feito como capitão-mor da armada que, pela primeira vez, ligou a Europa à Índia.

Comecemos pela partida, a 8 de julho de 1497, um sábado. Uns cento e setenta homens, entre soldados e marinheiros, aparelharam “a alma pera a morte” (IV, 86), comungando e pedindo a proteção de Deus, e, depois, dirigem-se em procissão da capela de Nossa Senhora de Belém para os batéis, que os conduziriam às três caravelas.

“A gente da cidade” (IV, 88) enche o areal, num ambiente tenso e sombrio. São as despedidas de quem parte “pera buscar do mundo novas partes.” (IV, 85).

“Por perdidos as gentes nos julgavam” – diz Vasco da Gama. E, entre a dor mais atroz, surgem

“As mulheres cum choro piadoso,

Os homens com suspiros que arrancavam.

Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso

Amor mais desconfia, acrecentavam

A desesperação e frio medo

De já nos não tornar a ver tão cedo.”

Neste ambiente na Praia das Lágrimas, como lhe chamavam à época,  Vasco da Gama, para evitar males maiores, toma uma decisão:

“Determinei de assi nos embarcarmos,

Sem o despedimento costumado.”

Mas este é apenas o peso inicial. Com a viagem no alto-mar, surgiam os enjoos, a ansiedade e o pânico do desconhecido, novos climas e doenças assustadoras, fenómenos naturais tenebrosos, tempestades, “naufrágios, perdições de toda a sorte” (V, 44). E também a fome e a sede e os encontros e desencontros com os povos indígenas e os ataques e outros acidentes…

No canto V, Vasco da Gama resume ao rei de Melinde – e a cada um de nós – todos estes tormentos:

“Ora imagina agora quão coitados

Andaríamos todos, quão perdidos,

De fomes, de tormentas quebrantados,

Por climas e por mares não sabidos!” (V, 70)

A viagem da armada de Gama até Calecute constitui um marco histórico, com um notável impacto aos mais diversos níveis. Mas teve um preço muito elevado, nomeadamente, em termos humanos.

Num tom épico-lírico, Fernando Pessoa imortalizaria, em pleno século XX, a grandeza de toda esta gesta com o poema “Mar Português” (in “Mensagem”):

“Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!

 

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,

Mas nele é que espelhou o céu.”

Vale a pena ouvir – e cantar – este poema, acompanhando Mafalda Arnauth e os “Milladoiro”. O tema faz parte do álbum "A Quinta das Lágrimas" (2008).

A Organização

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