Endechas a Bárbara escrava
Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que pera meus olhos
Fosse mais fermosa.
Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.
Uma graça viva,
Que neles lhe mora,
Pera ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.
Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão,
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbara não.
Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela, enfim, descansa
Toda a minha pena.
Esta é a cativa
Que me tem cativo;
E, pois nela vivo,
É força que viva.
“Endechas a Bárbara escrava”, ou cativa, é mais um conhecido poema
de Camões, notável pela forma como, em pleno seculo XVI, glorifica uma imagem
da mulher distinta da do ideal clássico, vigente na época.
Escrita na “medida velha”, com versos de cinco sílabas (a chamada
redondinha menor), a composição está em conformidade com a herança da poesia
palaciana.
Num registo leve, de enorme suavidade, esta é uma das poucas
poesias de Camões em que se fala de um amor correspondido, assim como da felicidade
proporcionada pela “presença serena", pela "doce figura” idealizada e
perfeita daquela mulher de outra raça, por quem se apaixonara.
Mas “Endechas a Bárbara cativa" é, sobretudo, uma obra-prima
genial, pela ousadia e originalidade com que o artista rompe com o modelo clássico
e convencional, que exaltava a beleza loura, a mulher branca, de faces rosadas,
tal como a Laura de Petrarca, a quem todos imitavam.
Aqui, temos um canto de louvor à beleza, isso sim, de uma mulher
negra e escrava, o que para a época constitui algo de profundamente inovador e
até surpreendente.
Para além disso, faz um jogo de inversão de papéis: uma escrava,
socialmente falando, transforma-se em poderosa “senhora / de quem é cativa”,
isto é, do sujeito poético agora preso a ela, afetivamente.
“Endechas a Bárbara escrava” já tem quase cinco séculos de vida. E
continua um verdadeiro apelo inspirador à Humanidade e ao encontro de culturas.
Um hino intemporal ao único sentimento capaz de aproximar povos, de unir
corações: o amor!
Aqui fica o convite para escutar o poema, interpretado por Zeca Afonso, em 1968, no disco “Cantares do Andarilho”...
“Endechas a Bárbara escrava” remete ainda para uma abordagem intertextual com “Lágrima de preta”, um poema do século XX, da autoria de António Gedeão.
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