Ao desconcerto do Mundo
Os
bons vi sempre passar
No
Mundo graves tormentos;
E,
pera mais me espantar,
Os
maus vi sempre nadar
Em
mar de contentamentos.
Cuidando
alcançar assim
O
bem tão mal ordenado,
Fui
mau, mas fui castigado.
Assim
que, só pera mim,
Anda
o Mundo concertado.
Luís de Camões
Esta é uma esparsa famosa, uma composição poética pertencente à influência tradicional, onde Camões reflete sobre o desconcerto do Mundo, ilustrando a sua abordagem com a sua experiência vivida.
O sujeito poético analisa a sociedade e assinala a sua perceção da injustiça no Mundo, já que os maus são premiados e os bons são castigados.
Verificando que não compensava ser “bom”, confessa que decidiu mudar o seu comportamento, tornando-se “mau”, na esperança de, assim, obter os benefícios que observava nos outros e conseguir uma vida alegre e feliz. Sucede que foi castigado, o que significa que só para ele o Mundo é justo e está “concertado”.
É esta situação que lhe causa espanto, perplexidade, indignação, desencanto, pessimismo, angústia, tal o desconcerto e a injustiça que, na sua perspetiva, existem.
De facto, a sociedade é de tal modo injusta, que premeia os maus comportamentos e castiga todos os que se orientam pelos verdadeiros princípios e valores, não obtendo ele quaisquer privilégios ao tornar-se como os outros, pois, só para ele, o Mundo é justo.
Nas palavras de José António Saraiva e Óscar Lopes, o problema central do poeta reside na “não correspondência entre os anseios, os valores, as razões e aquilo a que chamaríamos hoje o processo objetivo”, isto é, a realidade da vida social e material (1985, p. 337).
Em síntese, o poema é um balanço dos tempos de grande incerteza e contradição em que Camões vive: a par da confusão irracional do destino, das injustiças, do desconcerto, da arbitrariedade, da mentira dos “maus” – que, de acordo com a perceção do poeta, são premiados –, permanecia o desejo de justiça e de concerto do Mundo.
Esta reflexão afigura-se, porém, intemporal…
500 anos depois, em 2024, qual é a perceção reinante da vida e da sociedade?
O Mundo anda “concertado”?
E a Justiça é um presente para todos?
Sem comentários:
Enviar um comentário