Episódio do Velho do
Restelo
Mas
um velho, d'aspeito venerando,
Que
ficava nas praias, entre a gente,
Postos
em nós os olhos, meneando
Três
vezes a cabeça, descontente,
A
voz pesada um pouco alevantando,
Que
nós no mar ouvimos claramente,
Cum
saber só d'experiências feito,
Tais
palavras tirou do experto peito:
“Ó
glória de mandar, ó vã cobiça
Desta
vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó
fraudulento gosto, que se atiça
Cũa
aura popular, que honra se chama!
Que
castigo tamanho e que justiça
Fazes
no peito vão que muito te ama!
Que
mortes, que perigos, que tormentas,
Que
crueldades neles experimentas!
[…]
Não tens junto contigo o Ismaelita,
Com
quem sempre terás guerras sobejas?
Não
segue ele do Arábio a Lei maldita,
Se
tu pola de Cristo só pelejas?
Não
tem cidades mil, terra infinita,
Se
terras e riqueza mais desejas?
Não
é ele por armas esforçado,
Se
queres por vitórias ser louvado?
Deixas
criar às portas o inimigo,
Por
ires buscar outro de tão longe,
Por
quem se despovoe o Reino antigo,
Se
enfraqueça e se vá deitando a longe;
Buscas
o incerto e incógnito perigo
Por
que a Fama te exalte e te lisonje
Chamando-te
senhor, com larga cópia,
Da
Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia!”.
Luís de Camões, Os Lusíadas, IV, 94-95; 100-101.
O “Velho
do Restelo” constitui um episódio eloquente d’Os Lusíadas, com uma fortíssima
mensagem política e filosófica.
Na
Praia das Lágrimas, em Belém, no momento em que a armada de Vasco da Gama se
preparava para zarpar, Camões coloca na boca de um “velho, d' aspeito
venerando,” uma crítica muito forte em relação a tudo o que se está a passar:
censura a “glória de mandar” e a “vã cobiça”, responsáveis por “mortes”,
“perigos”, “tormentas”, “crueldades”, “desemparos”, “adultérios”, consumição
“de fazendas, de reinos e de impérios”.
Pela
boca do velho, o narrador aproveita, assim, para questionar a estratégia da
expansão marítima até ao Oriente, manifestando, em alternativa, a predileção de
determinados setores da sociedade portuguesa pela política africana: “Não tens
junto contigo o Ismaelita / Com quem sempre terás guerras sobejas?”.
Esta
é também a posição de Camões, apresentada na dedicatória ao rei D. Sebastião e
nas estâncias finais d’Os Lusíadas, da nobreza e de uma parte da
intelectualidade, na esteira de “Gil Vicente, Sá de Miranda, João de Barros,
Damião de Góis ou António Ferreira.”
Ficcionalmente,
este episódio acontece a 8 de julho de 1497. Na verdade, foi escrito mais de meio
século depois, de tal maneira que, quando Os Lusíadas são publicados, em
1572, esta é uma aposta geoestratégica com muito peso.
À época, as dificuldades na Ásia portuguesa eram gritantes e a instabilidade dominava no Norte de África, situação que nos obrigava a estar muito vigilantes, não só quanto às praças que ainda nos restavam em Marrocos, mas até em relação ao próprio Algarve.
Neste
contexto – escreve Isabel Rio Novo –, “o fanatismo do jovem rei e a sua
obsessão pelo espírito de cruzada, cuidadosamente alimentada por uma certa
franja da nobreza, foram, talvez, uma necessidade do tempo, com a qual Camões
estaria essencialmente de acordo. Até porque, de certo modo, o projeto da
conquista africana constituía uma possível solução para o beco sem saída em que
a Índia se estava a tornar. Era o caminho que o Velho do Restelo apontava,
contrapondo à conquista de um império comercial longínquo, consumidor de
‘fazendas’ e de ‘reinos’, a possibilidade de ‘guerras sobejas’ contra um
inimigo que estava ali ‘às portas’ e que era urgente combater.”
A
expedição acabou mesmo por se realizar. Diogo Bernardes foi escolhido para
acompanhar e cantar a vitória dada como certa. Camões também o desejou, mas não
o conseguiu. Só que o sonho glorioso redundou na tragédia de 4 de agosto de
1578, em Alcácer Quibir…
“Assim
que recebeu a notícia da derrota e da morte do rei, [Camões] rasgou as
estâncias que tinha encetado quando a armada de D. Sebastião largara do Tejo.
Quanto ao poema de Diogo Bernardes, não chegou a ser começado, porque o autor
foi um dos prisioneiros”…
Tempos
sombrios da História de Portugal. E também de Luís de Camões e do barquense
Diogo Bernardes.
Fonte:
Isabel Rio Novo, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte – Biografia de Luís Vaz de
Camões, Lisboa, Contraponto, 2024, pp. 446, 467 e 544.
A
Organização
Sem comentários:
Enviar um comentário