Perdigão
perdeu a pena,
Não há mal
que lhe não venha.
Perdigão, que o pensamento
Subiu a um alto lugar,
Perde a pena do voar,
Ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
Asas com que se sustenha:
Não há mal que lhe não venha.
Quis voar a uma alta torre,
Mas achou-se desasado;
E, vendo-se depenado,
De puro penado morre.
Se a queixumes se socorre,
Lança no fogo mais lenha:
Não há mal que lhe não venha.
Luís de Camões, Lírica, fixação de texto de Hernâni Cidade, Lisboa, Círculo de Leitores, 1980, p. 114.
Este é um vilancete que trata o tema do amor não
correspondido ou impossível, ao mesmo tempo que estabelece um contraste entre o
sonho e a realidade…
Num tom espirituoso, o poema explora, num jogo de
palavras, a riqueza polissémica do vocábulo "pena", considerando as suas
virtualidades semânticas: por um lado, a “pena do voar”, isto é, o sonho, e,
por outro, a “pena do tormento”, ou seja, a realidade, para já não falar na
“pena”, símbolo da escrita.
Numa primeira abordagem, descreve-se a tentativa
fracassada de uma ave, um perdigão, em voar até um “alto lugar”, como “uma alta
torre”. Ao falhar, cai e fica sem penas, isto é, “desasado”, “(…) E, vendo-se
depenado, / De puro penado morre”, sofrendo as consequências da sua ambição
desmedida, ao tentar ultrapassar os seus limites.
Acontece que, em muitas culturas, “perdigão” – ou
perdiz – é símbolo do apelo do amor, da mulher. E, na tradição cristã,
representa a tentação, a perdição.
Numa leitura alegórica, o poema sugere, por isso,
um amor não correspondido e critica, jocosamente, a ambição desmedida.
A
perda das penas da ave representa a perda do sonho de voar – de subir em
pensamento “a um alto lugar” – e a consequência da sua ambição:
“Perde a pena do voar,
Ganha a pena do tormento.”
O eu poético verifica, assim, que a realidade
prevalece, que o sonho alimentado é impossível, que o amor desejado é inatingível
e que a dor que a queda e o reconhecimento trazem consigo ganha…, ganha a pena
do tormento.
O ato de escrever representado pela pena, utensílio
de escrita, alia-se a essa outra pena, a do sofrimento de um amor impossível.
Esta é uma situação que nos traz ao pensamento os
amores proibidos, impossíveis, de Camões, que lhe causaram tantos dissabores na
vida…
Deixamos
o convite para escutar o vilancete cantado por Amália Rodrigues, com música de Alain
Oulman. Faz parte do álbum “Cantigas numa Língua antiga” (1977).
A Organização
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