terça-feira, 10 de dezembro de 2024

V CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE CAMÕES

Perdigão perdeu a pena,

Não há mal que lhe não venha.

 

Perdigão, que o pensamento

Subiu a um alto lugar,

Perde a pena do voar,

Ganha a pena do tormento.

Não tem no ar nem no vento

Asas com que se sustenha:

Não há mal que lhe não venha.

 

Quis voar a uma alta torre,

Mas achou-se desasado;

E, vendo-se depenado,

De puro penado morre. 

Se a queixumes se socorre,

Lança no fogo mais lenha:

Não há mal que lhe não venha.

Luís de Camões, Lírica, fixação de texto de Hernâni Cidade, Lisboa, Círculo de Leitores, 1980, p. 114.

Este é um vilancete que trata o tema do amor não correspondido ou impossível, ao mesmo tempo que estabelece um contraste entre o sonho e a realidade…

Num tom espirituoso, o poema explora, num jogo de palavras, a riqueza polissémica do vocábulo "pena", considerando as suas virtualidades semânticas: por um lado, a “pena do voar”, isto é, o sonho, e, por outro, a “pena do tormento”, ou seja, a realidade, para já não falar na “pena”, símbolo da escrita.

Numa primeira abordagem, descreve-se a tentativa fracassada de uma ave, um perdigão, em voar até um “alto lugar”, como “uma alta torre”. Ao falhar, cai e fica sem penas, isto é, “desasado”, “(…) E, vendo-se depenado, / De puro penado morre”, sofrendo as consequências da sua ambição desmedida, ao tentar ultrapassar os seus limites.

Acontece que, em muitas culturas, “perdigão” – ou perdiz – é símbolo do apelo do amor, da mulher. E, na tradição cristã, representa a tentação, a perdição.

Numa leitura alegórica, o poema sugere, por isso, um amor não correspondido e critica, jocosamente, a ambição desmedida.

A perda das penas da ave representa a perda do sonho de voar – de subir em pensamento “a um alto lugar” – e a consequência da sua ambição:

“Perde a pena do voar,

Ganha a pena do tormento.”

O eu poético verifica, assim, que a realidade prevalece, que o sonho alimentado é impossível, que o amor desejado é inatingível e que a dor que a queda e o reconhecimento trazem consigo ganha…, ganha a pena do tormento.

O ato de escrever representado pela pena, utensílio de escrita, alia-se a essa outra pena, a do sofrimento de um amor impossível.

Esta é uma situação que nos traz ao pensamento os amores proibidos, impossíveis, de Camões, que lhe causaram tantos dissabores na vida…

Deixamos o convite para escutar o vilancete cantado por Amália Rodrigues, com música de Alain Oulman. Faz parte do álbum “Cantigas numa Língua antiga” (1977).

A Organização

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