Descalça
vai pera a fonte
Lianor pela verdura;
Vai fermosa, e não segura.
Leva na cabeça o pote,
O testo nas mãos de prata,
Cinta de fina escarlata,
Sainho de chamalote;
Traz a vasquinha de cote,
Mais branca que a neve pura.
Vai fermosa, e não segura.
Descobre a touca a garganta,
Cabelos de ouro entrançado
Fita de cor de encarnado,
Tão linda que o mundo espanta.
Chove nela graça tanta,
Que dá graça à fermosura.
Vai fermosa, e não segura.
Luís de Camões, Lírica, fixação de texto de Hernâni Cidade, Lisboa, Círculo de Leitores, 1980, p. 128.
Neste vilancete, o sujeito
poético descreve Lianor, num ambiente
rural, a caminho da fonte, onde
vai buscar água…, e não só!
Ela é uma jovem frágil,
delicada e formosa, com graciosidade e pureza interior, mas insegura: “Vai
fermosa, e não segura.” Esta ideia constitui, aliás, o refrão, repetido no
final de cada estrofe.
Por um lado,
valoriza-se a beleza física de Lianor, num retrato idealizado à maneira clássica, em que sobressai a pele branca e os cabelos
louros, qualidades realçadas com as metáforas "mãos de prata" – "mais
branca que a neve pura" – e "cabelos de ouro entrançado":
“(…) Tão linda que o mundo espanta.
Chove nela graça tanta,
Que dá graça à fermosura."
E, para acentuar a beleza, o sujeito poético
recorre a cores contrastantes: branco – símbolo de pureza e de inocência –,
vermelho – que remete para a força, a vida, a sensualidade – e também à prata e
ao ouro, que sugerem brilho, luminosidade, importância, perfeição.
Mas, para além da
exaltação da beleza física e também
espiritual de Lianor, surge a referência
à sua posição social humilde e ainda, sobretudo, à sua insegurança, porque
ela vai à fonte, não apenas para buscar água, mas para se encontrar, às
escondidas, com o seu namorado.
Os elementos bucólicos presentes neste vilancete, escrito
em redondilha maior, a medida velha de versos com sete sílabas, bem como a
conceção da mulher e do amor, colocam o poema de Camões na linha da poesia
trovadoresca medieval.
Sobressai a conceção platónica do amor, assim como
uma visão idealizada e estereotipada da mulher, com os cabelos da cor do ouro e
as mãos da cor da prata.
Em pleno século XXI, estes códigos de beleza
continuam válidos em algumas situações. Mas, em muitos outros contextos, são
bem diferentes os atuais padrões de beleza femininos difundidos até à exaustão,
a ponto de, por vezes, causarem profundo impacto negativo, em termos de saúde
física e mental…
Enfim, tal como conversámos na última semana, “(…)
mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”.
Sugerimos a escuta do vilancete “Descalça vai pera a fonte”, interpretado pela soprano Ana Madalena Moreira, acompanhada ao piano por Lucjan Luc…
A Organização
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