“(…)
um bicho da terra tão pequeno?”
(…) Oh!
Grandes e gravíssimos perigos,
Oh! Caminho da vida nunca certo,
Que, aonde a gente põe sua esperança,
Tenha a vida tão pouca segurança!
No mar, tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida;
Na terra, tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu
sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 105-106
A
narração n’Os Lusíadas principia com a armada de Vasco da Gama a meio da
viagem (in medias res), já a chegar à Ilha de Moçambique, onde faz escala
para se abastecer.
A
partir daqui, assiste-se a um conjunto de atribulações, com ciladas, falsidades
e traições que quase deitam tudo a perder, não fora a intervenção de Vénus.
Na
Ilha de Moçambique, o chefe local, quando verifica, inspirado por Baco, que os
Portugueses são cristãos, resolve destruí-los. E Gama, depois de ter sido atacado,
traiçoeiramente, é enganado e recebe a bordo um piloto, com ordens para levar a
armada a cair numa cilada.
Ao
aproximarem-se da perigosa zona de Quíloa, Vénus afasta-os da costa por meio de
“ventos contrários”, anulando, assim, a traição. O piloto mouro ainda faz
outras tentativas, mas Vénus está atenta e impede que isso aconteça. A viagem continua
para Norte e chegam à cidade de Mombaça, cujo rei fora avisado por Baco para os
exterminar.
Face
a tantas traições e a tantos perigos – ciladas, hostilidade disfarçada que
ilude e alimenta esperanças –, o poeta não resiste a uma reflexão.
Termina
o primeiro canto com uma consideração sobre a imprevisibilidade e a insegurança
da vida e a fragilidade da condição do ser humano, “um bicho da terra tão
pequeno”…, exposto a todos os perigos e incertezas e vítima indefesa do “Céu
sereno” (I, 106).
Os
perigos espreitam o ser humano (o herói), tão pequeno diante das forças da
natureza, do poder da guerra e dos traiçoeiros enganos dos inimigos. Estamos no
início da epopeia. Ver-se-á, no último canto, o décimo, até onde a ousadia, a
coragem e o desejo de ir sempre mais além podem levar o “bicho da terra tão
pequeno”…
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Ilustração de Lima de Freitas, em Luís de Camões, Lírica, Lisboa, Círculo de Leitores, 1980, p. 467. |
Curiosamente,
Camões repete este verso emblemático na canção “Junto de um seco, fero e
estéril monte”, em que o sujeito poético reflete sobre a sua própria condição:
(…) Somente o Céu severo,
As Estrelas e o Fado sempre fero,
Com meu perpétuo dano se recreiam,
Mostrando-se potentes e indignados
Contra um corpo terreno,
Bicho da terra vil e tão pequeno. (…)
Quase
cinco séculos passados, Camões continua intemporal, vivo e inspirador na
análise da condição humana, na sua insegurança, fragilidade e contingência.
No
século XVI e nos dias de hoje, Camões embarca Engenho e Arte!
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