Publicação de Os Lusíadas
As armas e os barões
assinalados
Que, da ocidental praia lusitana,
Por mares nunca de antes
navegados
Passaram ainda além da
Taprobana,
E em perigos e guerras
esforçados
Mais do que prometia a
força humana,
E entre gente remota
edificaram
Novo Reino, que tanto
sublimaram;
E também as memórias
gloriosas
Daqueles reis que foram
dilatando
A Fé, o Império, e as
terras viciosas
De África e de Ásia
andaram devastando;
E aqueles que por obras
valerosas
Se vão da lei da Morte
libertando:
Cantando espalharei por
toda parte,
Se a tanto me ajudar o
engenho e arte.
Cessem do sábio grego e
do troiano
As navegações grandes
que fizeram;
Cale-se de Alexandro e
de Trajano
A fama das vitórias que
tiveram;
Que eu canto o peito
ilustre lusitano,
A quem Neptuno e Marte
obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa
antiga canta,
Que outro valor mais
alto se alevanta.
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 1-3
Terá
sido no dia 12 de março do ano de 1572, quarta-feira, que da oficina de António
Gonçalves saíram, “em edição modesta, os primeiros exemplares impressos do
livro chamado Os Lusíadas, de Luís
de Camões.”
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Capa da 1.ª edição d'Os Lusíadas (1572). |
“A
obra harmonizava elementos da epopeia clássica com a evocação da expedição de
Vasco da Gama à Índia e as próprias memórias de viagem do autor, cheias de
trabalhos e perigos; combinava frescos históricos e factos científicos com
recursos poéticos e mitologia; juntava o panfleto político aos apelos
cruzadísticos; aliava ao saber enciclopédico a excelência de estilo. E todos os
heroísmos do passado eram trazidos ao presente para se projetarem no futuro”.
A
edição de 1572 publicou uns 150 exemplares de que sobram ainda uma meia
centena, o que ilustra bem o cuidado que, ao longo dos séculos, o livro
inspirou.
Camões
chamou-lhe Os Lusíadas, título
erudito que foi buscar a duas obras do humanista André de Resende escritas em
latim, “mas até o próprio André de Resende, ao que parece, tinha colhido a
palavra lusíadas em obras
anteriores”.
Com
esta publicação, concretizava-se, finalmente, o anseio coletivo que se
arrastava há várias décadas, no sentido da composição de um poema épico,
conferindo aos feitos nacionais recentes um estatuto universal e intemporal.
António
Ferreira “fora dos últimos a reclamar a necessidade de pôr em verso os feitos
gloriosos. Incitara Pero Andrade Caminha, Diogo Bernardes, Diogo de Teive, D.
António de Vasconcelos… Não consta que tivesse incitado Luís de Camões”, mas a
verdade é que foi este quem concretizou tal obra.
Para
a sua publicação foi necessário obter as licenças exigidas, como o alvará régio
e o parecer favorável da Inquisição, e também arranjar um mecenas que custeasse
os cerca de 40 mil réis da impressão.
D.
Manuel de Portugal, da família do Conde do Vimioso, patrocinou a edição, mas
desejou permanecer na sombra, de tal modo que a epopeia foi dada à estampa sem
uma ode dedicada ao protetor. Tudo isto porque ele “não podia comprometer-se
excessivamente, nem à sua família, com um poema que, apesar de todos os méritos
e excelências, questionava a nobreza, os membros do clero, o sistema jurídico,
o próprio monarca…”.
Quanto
ao filtro da Inquisição, frei Bartolomeu Ferreira foi o dominicano que examinou
os dez cantos d’Os Lusíadas. E deu um parecer favorável:
“[…]
Não achei neles cousa alguma escandalosa, nem contrária à fé e bons costumes,
somente me pareceu que era necessário advertir os leitores que o autor, pera
encarecer a dificuldade da navegação e entrada dos portugueses na Índia, usa de
uma ficção dos deuses e dos gentios. […] Todavia, como isto é poesia e
fingimento, e o autor, como poeta, não pretenda mais do que ornar o estilo
poético, não tivemos por inconveniente
ir esta fábula dos deuses na obra, conhecendo-a por tal. E ficando sempre salva
a verdade de nossa santa fé, que todos os deuses dos gentios são demónios”.
Assim
sendo, conclui, o livro é “digno de se imprimir” e o seu “autor mostra nele
muito engenho e muita erudição nas ciências humanas”.
A
epopeia terá, então, sido publicada a 12 de março de 1572, completam-se amanhã
453 anos.
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Retrato de Camões por Fernão Gomes, em cópia de Luís de Resende. O original perdeu-se, mas foi pintado ainda em vida do Poeta (cerca de 1577). É considerado o mais autêntico retrato do nosso épico. |
Com
Isabel Rio Novo, podemos imaginar esse dia e a emoção do autor. “Em 1572,
Camões tinha 47 ou 48 anos. Não era um velho, apesar de a idade ter outro peso
naqueles tempos. Mas era um homem envelhecido, doente, amargurado, a quem o
futuro já fugia. No entanto, nessa manhã de março (cheia de sol, claro que sim)
talvez tenha encarado a vida que lhe restava com algum otimismo”.
Nos
453 anos da publicação d’Os Lusíadas,
celebremos Camões. Cantemos o Poeta, que continua a espalhar Engenho e
Arte!
Fonte: Isabel Rio Novo, Fortuna, Caso,
Tempo e Sorte – Biografia de Luís Vaz de Camões, Lisboa, Contraponto, 2024, pp.
483, 459, 458, 467-468, 474, 478 e 481.
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