O poder corruptor do “vil
interesse” do dinheiro
Nas naus estar se
deixa, vagaroso,
Até ver o que o
tempo lhe descobre;
Que não se fia já
do cobiçoso
Regedor,
corrompido e pouco nobre.
Veja agora o
juízo curioso
Quanto no rico,
assi como no pobre,
Pode o vil
interesse e sede imiga
Do dinheiro, que
a tudo nos obriga.
[…] Este rende
munidas fortalezas;
Faz tredoros e
falsos os amigos;
Este a mais
nobres faz fazer vilezas,
E entrega
Capitães aos inimigos;
Este corrompe
virginais purezas,
Sem temer de
honra ou fama alguns perigos;
Este deprava às
vezes as ciências,
Os juízos cegando
e as consciências.
Este interpreta
mais que sutilmente
Os textos; este
faz e desfaz leis;
Este causa os
perjúrios entre a gente
E mil vezes
tiranos torna os Reis.
Até os que só a
Deus omnipotente
Se dedicam, mil
vezes ouvireis
Que corrompe este
encantador, e ilude;
Mas não sem cor,
contudo, de virtude!
Luís de Camões, Os Lusíadas, VIII,
96; 98-99.
Na parte final do canto VIII d’Os Lusíadas, a permanência da armada de Vasco da Gama em Calecute,
na Índia, sofre um revés. Instigados por Baco, os locais revoltam-se contra os
Portugueses e, neste contexto, aparece o poder do dinheiro.
O Catual,
um alto funcionário público nestas paragens do Oriente, deixa o Capitão
regressar às naus e partir em liberdade, mas a troco de um conjunto de mercadorias.
A
propósito da narração do suborno do Catual e das suas exigências aos
navegadores, o
Poeta refere
um dos males da sociedade sua contemporânea, orientada para o materialismo, fazendo
estas reflexões amargas, de profunda crítica ao poder corruptor do “metal
luzente e louro”, isto é, do dinheiro.
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“O
emprestador e a sua mulher”, Marinus van Reymerswaele – óleo no painel (Prado,
Madrid, Spain / Bridgeman Images). Disponível em https://www.meisterdrucke.pt/, acedido
em 28/03/25. |
Explicando
esta passagem, Amélia Pinto Pais escreve que “o ouro e o dinheiro têm, de
facto, estranhos poderes, como o de levarem à rendição fortalezas bem munidas;
levarem à traição os amigos; fazerem cometer vilezas aos mais nobres; entregar
Capitães aos inimigos. O ouro chega a corromper as purezas virginais, a
depravar as ciências, cegando os juízos e as consciências. Interpreta mais do que
subtilmente os textos. Leva as pessoas ao falso testemunho e torna tiranos os
reis. E parece que corrompe até aqueles que se dedicam a Deus; e sempre,
sempre, sob capa de virtuoso…”.
O Poeta
assume, assim, o seu papel humanista de intervenção, de forma pedagógica, denunciando
o “vil interesse” e a sede insaciável do dinheiro, fonte de corrupção e de
traições, tanto no rico como no pobre…
Em
suma, a cobiça, a ambição e a tirania são honras vãs que não dão verdadeiro
valor ao homem e muito menos à Pátria que, à época, nas palavras do narrador,
estava metida “no gosto da cobiça e na rudeza / Duma austera, apagada e vil
tristeza” (X, 145).
Os
ideais que dão acesso ao heroísmo, à glória, à imortalidade, são outros.
Esta
é a exortação do Poeta, no final d’Os
Lusíadas, uma epopeia intemporal!
A Organização
Fonte: Amélia Pinto Pais, “Os Lusíadas em Prosa”, Porto, Areal
Editores, 1995, p. 63.