segunda-feira, 31 de março de 2025

V CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE CAMÕES

O poder corruptor do “vil interesse” do dinheiro

Nas naus estar se deixa, vagaroso,

Até ver o que o tempo lhe descobre;

Que não se fia já do cobiçoso

Regedor, corrompido e pouco nobre.

Veja agora o juízo curioso

Quanto no rico, assi como no pobre,

Pode o vil interesse e sede imiga

Do dinheiro, que a tudo nos obriga.

 

[…] Este rende munidas fortalezas;

Faz tredoros e falsos os amigos;

Este a mais nobres faz fazer vilezas,

E entrega Capitães aos inimigos;

Este corrompe virginais purezas,

Sem temer de honra ou fama alguns perigos;

Este deprava às vezes as ciências,

Os juízos cegando e as consciências.

 

Este interpreta mais que sutilmente

Os textos; este faz e desfaz leis;

Este causa os perjúrios entre a gente

E mil vezes tiranos torna os Reis.

Até os que só a Deus omnipotente

Se dedicam, mil vezes ouvireis

Que corrompe este encantador, e ilude;

Mas não sem cor, contudo, de virtude!

       Luís de Camões, Os Lusíadas, VIII, 96; 98-99. 

Na parte final do canto VIII d’Os Lusíadas, a permanência da armada de Vasco da Gama em Calecute, na Índia, sofre um revés. Instigados por Baco, os locais revoltam-se contra os Portugueses e, neste contexto, aparece o poder do dinheiro.

O Catual, um alto funcionário público nestas paragens do Oriente, deixa o Capitão regressar às naus e partir em liberdade, mas a troco de um conjunto de mercadorias.

A propósito da narração do suborno do Catual e das suas exigências aos navegadores, o Poeta refere um dos males da sociedade sua contemporânea, orientada para o materialismo, fazendo estas reflexões amargas, de profunda crítica ao poder corruptor do “metal luzente e louro”, isto é, do dinheiro.

“O emprestador e a sua mulher”, Marinus van Reymerswaele
– óleo no painel (Prado, Madrid, Spain / Bridgeman Images).
Disponível em https://www.meisterdrucke.pt/, acedido em 28/03/25. 

Explicando esta passagem, Amélia Pinto Pais escreve que “o ouro e o dinheiro têm, de facto, estranhos poderes, como o de levarem à rendição fortalezas bem munidas; levarem à traição os amigos; fazerem cometer vilezas aos mais nobres; entregar Capitães aos inimigos. O ouro chega a corromper as purezas virginais, a depravar as ciências, cegando os juízos e as consciências. Interpreta mais do que subtilmente os textos. Leva as pessoas ao falso testemunho e torna tiranos os reis. E parece que corrompe até aqueles que se dedicam a Deus; e sempre, sempre, sob capa de virtuoso…”.

O Poeta assume, assim, o seu papel humanista de intervenção, de forma pedagógica, denunciando o “vil interesse” e a sede insaciável do dinheiro, fonte de corrupção e de traições, tanto no rico como no pobre…

Em suma, a cobiça, a ambição e a tirania são honras vãs que não dão verdadeiro valor ao homem e muito menos à Pátria que, à época, nas palavras do narrador, estava metida “no gosto da cobiça e na rudeza / Duma austera, apagada e vil tristeza” (X, 145).

Os ideais que dão acesso ao heroísmo, à glória, à imortalidade, são outros.

Esta é a exortação do Poeta, no final d’Os Lusíadas, uma epopeia intemporal!

A Organização

Fonte: Amélia Pinto Pais, “Os Lusíadas em Prosa”, Porto, Areal Editores, 1995, p. 63.

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