Sôbolos rios que vão | Redondilhas de
Babel e Sião
Sôbolos rios que vão
Por Babilónia, me achei,
Onde sentado chorei
As lembranças de Sião,
E quanto nela passei.
[…] Ali, depois de acordado,
Co'o rosto banhado em água,
Deste sonho imaginado,
Vi que todo o bem passado
Não é gosto, mas é mágoa.
E vi que todos os danos
Se causavam das mudanças
E as mudanças dos anos;
Onde vi quantos enganos
Faz o tempo às esperanças.
Ali vi o maior bem
Quão pouco espaço que dura;
O mal quão depressa vem,
E quão triste estado tem
Quem se fia da ventura.
[…] Quem do vil contentamento
Cá deste mundo visível,
Quanto ao homem for possível,
Passar logo o entendimento
Para o mundo inteligível.
Ali verá tão profundo
Mistério na suma Alteza,
Que, vencida a Natureza,
Os mores faustos do Mundo
Julgue por maior baixeza.
Ó tu, divino aposento,
Minha pátria singular,
Se só com te imaginar,
Tanto sobe o entendimento,
Que fará se em ti se achar?
Ditoso quem se partir
Para ti, terra excelente,
Tão justo e tão penitente,
Que, depois de a ti subir,
Lá descanse eternamente!
Luís de Camões, Lírica, fixação do texto de Hernâni Cidade, Lisboa, Círculo de
Leitores, 1980, pp. 91-102.
Vítor
Aguiar e Silva considera este longo poema o “canto penitencial de um homem que
sabe que só a fé em Cristo e só a graça de Deus o podem salvar”.
E
Vasco Graça Moura afirma que em “Sôbolos rios que vão” Camões “terá intentado
conciliar, metafísica e escatologicamente, uma ortodoxia católica e uma das
mais estritas conceções pitagóricas de que haverá vestígios na criação
literária do século XVI”.
Inspirado
no Salmo 136 – “Junto aos rios de Babilónia” –, que chora a deportação dos
Judeus para a Babilónia ao mesmo tempo que recorda a Terra Prometida, o poema celebra
a Jerusalém celeste e é de uma enorme riqueza, em termos de intertextualidades
e de paralelismos, nomeadamente com outras passagens bíblicas, mas, sobretudo, com
a obra Imagem da Vida Cristã, de frei Heitor Pinto.
São vários
os biógrafos e comentadores da obra de Camões que sugerem que o Poeta compôs estas
célebres redondilhas na sequência do seu naufrágio, no delta do rio Mecom,
quando regressava de Macau para Goa.
Isabel
Rio Novo, autora de uma biografia do nosso épico recentemente editada, não
partilha, no entanto, esta ideia. Na sua perspetiva, “é improvável que um
náufrago descorçoado, com sede, fome, aflito, dispusesse de condições materiais
e psicológicas para se entregar à escrita de poemas. Mas é possível –
acrescenta a investigadora – que essa espécie de canto penitencial, “tal como
os sonetos em tom de elegia dedicados à moça chinesa, tenham começado a ser inconscientemente
forjados nessa altura em que mais um transe da fortuna o atingia, roubando-lhe,
de uma vez, a riqueza e a mulher que talvez amasse”.
Do
que parece não haver dúvidas é de que esta “verdadeira autobiografia espiritual
é uma “obra tardia, posterior à publicação de Os Lusíadas, pois o canto
profano (‘a flauta’) é preterido em favor do canto divino (‘a lira dourada’),
que ressuma a efemeridade da vida, a iminência da morte, o desejo profundo de
conversão. Provavelmente – conclui Isabel Rio Novo –, Camões entrelaçou dois
tempos num só: o passado e o presente, o naufrágio real no Extremo Oriente e o
naufrágio metafórico da sua alma angustiada”.
Na
parte final deste poema de rara beleza, Sião deixa de ser o passado, a mulher
amada, e transforma-se na Jerusalém celeste, na Bem-aventurança. O amor mundano
projeta o reflexo do amor divino:
Ditoso quem se partir
Para ti, terra excelente,
Tão justo e tão penitente,
Que, depois de a ti subir,
Lá descanse eternamente!
Cinco
séculos volvidos, na Quaresma de 2025, Camões continua a espalhar Engenho e
Arte!
Fonte:
Isabel Rio Novo, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte – Biografia de Luís Vaz de
Camões, Lisboa, Contraponto, 2024, pp. 672; 389-390; 547.
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