Mandas-me, ó Rei, que conte…
Prontos
estavam todos escuitando
O
que o sublime Gama contaria,
Quando,
despois de um pouco estar cuidando,
Alevantando
o rosto, assi dizia:
–
«Mandas-me, ó Rei, que conte declarando
De
minha gente a grão genealogia;
Não
me mandas contar estranha história,
Mas mandas-me louvar dos meus a glória.
Que
outrem possa louvar esforço alheio,
Cousa
é que se costuma e se deseja;
Mas
louvar os meus próprios, arreceio
Que
louvor tão suspeito mal me esteja;
E,
pera dizer tudo, temo e creio
Que
qualquer longo tempo curto seja;
Mas,
pois o mandas, tudo se te deve;
Irei contra o que devo, e serei breve.
Além
disso, o que a tudo, enfim, me obriga
É
não poder mentir no que disser,
Porque
de feitos tais, por mais que diga,
Mais
me há de ficar inda por dizer.
Mas,
porque nisto a ordem leve e siga,
Segundo
o que desejas de saber,
Primeiro
tratarei da larga terra,
Despois
direi da sanguinosa guerra. […]»
Luís de Camões, Os Lusíadas, III, 3-5
É
neste início do canto III que o “sublime Gama” assume o papel de narrador,
contando – ou melhor, cantando – ao rei de Melinde a História de Portugal e da
viagem, de que ele próprio era o “valeroso capitão”.
Neste
porto seguro do Índico, Vasco da Gama trata primeiro “da larga terra”, em
seguida, da “sanguinosa guerra” e, por fim, da viagem da sua armada, desde
Belém até Melinde, onde se encontram, dando corpo aos cantos III, IV e V.
O
herói de Os Lusíadas é “o peito ilustre Lusitano / a quem Neptuno e Marte
obedeceram” (I, 3). Mas o acontecimento maior que serve de eixo a toda a narração
é a viagem de Vasco da Gama (1469-1524), que, “por mares nunca de antes
navegados” (I, 1), deu novos mundos ao mundo, ao chegar a Calecute, na Índia, a
20 de maio de 1498, na mais longa viagem oceânica até então realizada.
Não
deixa de ser curioso que esta figura central da epopeia tenha morrido,
precisamente, no ano em que Camões nasceu. Foi a 24 de dezembro de 1524 – fez
no dia de Consoada 500 anos – que faleceu em Cochim, na Índia, onde
desempenhava o cargo de vice-rei.
Umas
quatro décadas e meia depois, os Gama e Camões voltam a cruzar-se, quando o
poeta preparava a publicação de Os Lusíadas, obra que imortalizaria, entre
outros, os feitos do “valeroso capitão”.
Procurando
um mecenas para a impressão do livro, Isabel Rio Novo escreve que Camões,
“segundo todas as probabilidades, foi primeiro bater às portas da família Gama.
[…] Mas os Gama não atenderam o seu pedido.” A
este propósito, a autora recorda ainda que o “biógrafo inglês Richard Burton
evocava uma anedota, segundo a qual, numa altura em que alguém citara Os
Lusíadas como honrando o nome dos Gama, um descendente do descobridor tinha
exclamado: ‘Temos os títulos e não queremos os elogios.’”
Enfim!
Razão tinha o poeta para lamentar, no final do canto V, que “quem não sabe arte
não na estima” (V, 97), criticando os seus contemporâneos, porque desprezavam
as letras, a arte em geral.
Mais:
os Portugueses são “tão ásperos”, “tão austeros, / tão rudos e de engenho tão
remisso” (V, 98), que nem se preocupam minimamente com esta sua pobre condição.
Pois… Era assim, há 500
anos!
Bibliografia:
Isabel Rio Novo, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte – Biografia de Luís Vaz de
Camões, Lisboa, Contraponto, 2024, p. 460.
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