Uma história
trágico-marítima
(…) Outro também virá, de honrada fama,
Liberal, cavaleiro, enamorado,
E consigo trará a fermosa dama
Que Amor por grão mercê lhe terá dado.
Triste ventura e negro fado os chama
Neste terreno meu, que, duro e irado,
Os deixará dum cru naufrágio vivos,
Pera verem trabalhos excessivos.
Verão morrer com fome os filhos caros,
Em tanto amor gerados e nacidos;
Verão os Cafres, ásperos e avaros,
Tirar à linda dama seus vestidos;
Os cristalinos membros e preclaros
À calma, ao frio, ao ar verão despidos,
Despois de ter pisada, longamente,
Cos delicados pés a areia ardente.
E verão mais os olhos que escaparem
De tanto mal, de tanta desventura,
Os dous amantes míseros ficarem
Na férvida e implacábil espessura.
Ali, despois que as pedras abrandarem
Com lágrimas de dor, de mágoa pura,
Abraçados, as almas soltarão
Da fermosa e misérrima prisão.
Luís de Camões, Os
Lusíadas, V, 46-48.
O
gigante Adamastor profetizara, ficcionalmente, numa noite aterradora de
novembro de 1497, mil e uma vinganças: “Eu farei de improviso tal castigo, /
Que seja mor o dano que o perigo!” (V, 43); “Naufrágios, perdições de toda a
sorte, / Que o menor mal de todos seja a morte!” (V, 44).
Aproveitando
o facto de a obra ser escrita mais de meio século depois, o narrador assinala
alguns acontecimentos trágicos, como a morte de Bartolomeu Dias, que havia
descoberto o Cabo, em 1488. Pois bem, aí morreria – qual vingança do monstro –
em 1500. E o mesmo se diga de D. Francisco de Almeida, 1.º vice-rei da Índia,
morto num combate contra os Cafres, ao norte do Cabo da Boa Esperança, em 1510
(cf. V, 45).
Mas
o caso mais impressionante foi o da “triste ventura e negro fado” por que
passaram Manuel de Sousa Sepúlveda, a esposa – a bela D. Leonor de Albuquerque
– e os dois filhos de tenra idade, na sequência do naufrágio do galeão São João.
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Início da História Trágico-Marítima (1735), de Bernardo Gomes de Brito. |
Aconteceu
em meados de 1552 (24 de junho), um ano antes de Luís de Camões navegar pelas mesmas
paragens, mas em direção a Goa.
Tendo
como capitão Manuel de Sousa Sepúlveda, que servira na Índia durante 17 anos, o
galeão partira de Cochim “carregado de riquezas e com quinhentas pessoas a
bordo”.
Naufragou
perto Cabo da Boa Esperança, mas o capitão, a família e muitos outras pessoas
conseguiram escapar a bordo de dois batéis, iniciando uma longa caminhada pela
costa moçambicana, em direção ao rio Tembe, onde havia Portugueses.
Sofreram
“trabalhos excessivos”, obrigados a lutar contra a fome, a sede, o cansaço, os
ataques de animais selvagens e dos cafres locais. E foi num desses assaltos que
os Sepúlveda foram despidos e enviados para o mato.
Escreve
Isabel Rio Novo que D. Leonor acabaria por ceder “à exaustão e ao desalento.
Despida, com os filhos famintos, sentou-se no chão, envolveu-se nos cabelos e
fez uma cova com as próprias unhas, onde se enterrou até à cintura. Os
náufragos prosseguiram a caminhada; apenas um servo e algumas escravas ficaram
ao lado de D. Leonor. Entretanto, Manuel de Sousa Sepúlveda, que fora à procura
de frutos silvestres, encontrou um dos filhos morto, a mulher em choque diante
do pequeno cadáver, o outro filho moribundo nos braços. Sem dizer palavra, o
pai abençoou a criança morta e enterrou-a. Ausentou-se novamente, e, quando
voltou, já D. Leonor e o outro filho tinham morrido. As escravas que assistiram
ao lance e sobreviveram para narrar a tragédia contaram que o homem se sentou
ao lado dos cadáveres e aí permaneceu durante algum tempo, de rosto afundado
nas mãos. Depois, ele próprio enterrou a mulher e o filho. A seguir, embrenhou-se
no mato e nunca mais foi visto. As escravas e o servo seguiram na direção dos
restantes náufragos e conseguiram alcançá-los. Foram essas três escravas que,
juntamente com oito portugueses e catorze escravos, chegaram a Moçambique a 25
de maio de 1553, onde narraram o que tinham presenciado, e dali foram à Índia”.
São estes
acontecimentos trágicos dos “dois amantes míseros” que, para além de mereceram
uma justa celebração n’Os Lusíadas, inspiraram a Elegíada, de Luís Pereira
Brandão, o poema “Naufrágio e Lastimoso Sucesso da Perdição de Manuel de Sousa
Sepúlveda”, de Jerónimo Corte-Real, e a mais célebre relação de naufrágio de
todas as compiladas na História Trágico-Marítima, de Bernardo Gomes de Brito.
E
também a canção “Manuel de Sousa Sepúlveda”, um tema de Fausto que faz parte do
seu álbum de 1994, Crónicas da Terra Ardente.
Fonte:
Isabel Rio Novo, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte – Biografia de Luís Vaz de
Camões, Lisboa, Contraponto, 2024, pp. 289-291.
A Organização
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