terça-feira, 12 de novembro de 2024

V CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE CAMÕES

“Numa mão sempre a espada e noutra a pena.”

Olhai que há tanto tempo que, cantando

O vosso Tejo e os vossos Lusitanos,

A Fortuna me traz peregrinando,

Novos trabalhos vendo e novos danos:

Agora o mar, agora experimentando

Os perigos Mavórcios inumanos,

Qual Cânace, que à morte se condena,

Numa mão sempre a espada e noutra a pena.

Luís de Camões, Os Lusíadas, VII, 79 

Nesta reflexão final do canto VII de Os Lusíadas, Camões queixa-se da ingratidão de que é vítima. Ele que sonhava com a coroa de louros dos poetas, vê-se votado ao esquecimento e à sorte mais mesquinha, sem ver reconhecido pelos que detêm o poder o serviço que presta à Pátria.

Usando um texto de tom marcadamente autobiográfico, faz referência a várias etapas do seu percurso e suplica auxílio porque, segundo diz, teme que o barco da sua vida e da sua obra não chegue a bom porto. Uma vida que tem sido cheio de adversidades: a pobreza, a desilusão, perigos do mar e da guerra, “Numa mão sempre a espada e noutra a pena.”

Neste retrato, surge, novamente, o modelo de virtude e de dedicação heroica. E, no verso “Numa mão sempre a espada e noutra a pena”, destaca as suas facetas de guerreiro e de poeta, valorizando a conjugação da bravura com o amor à poesia.

Adaptando aos tempos que correm, em pleno século XXI, dir-se-ia que o cidadão exemplar é o humanista, é aquele que alcança o equilíbrio perfeito entre a vida ativa e a vida contemplativa.

 

Outra abordagem

Uma abordagem intertextual do excerto permite-nos, no entanto, alcançar outras dimensões. É o que propomos, agora, guiados pelo saber de Frederico Lourenço, num texto de 2017:

“(…) Todos conhecemos o famoso verso do canto VII d'Os Lusíadas: ‘numa mão sempre a espada e noutra a pena’, com que Camões se descreve a si próprio.

A maior parte das pessoas pensa: ah, pois! O grande herói da Índia, dos Descobrimentos, do Império! A espada e a pena, as armas e as letras!

Só que não é nada disso. A espada de que fala Camões é outra espada. É a espada dada por um pai à filha para ela se suicidar. Porquê? Porque ela engravidou do próprio irmão.

Leiamos a citação toda: ‘Qual Cânace que à morte de condena, / Numa mão sempre a espada e noutra a pena.

Tudo está em percebermos quem é esta Cânace, a quem Camões se compara. Ora Cânace é uma figura das Heróides do poeta romano Ovídio, muito lido e imitado por Camões em toda a sua obra. Os versos de Camões são uma recriação dos seguintes versos de Ovídio: ‘na mão direita segura o cálamo; na outra segura a espada impiedosa’ (Heróides 11,3).

Com estas palavras, pois, Camões está a colocar-se na pele de:

1.   uma mulher;

2.   apanhada numa situação tão extrema da sua vida;

3.   grávida do próprio irmão;

4.   que acaba de receber do pai a espada para se suicidar.

Mas a questão complica-se ainda mais. Temos de ver agora que os versos do canto VII d' Os Lusíadas retomam, por sua vez, os seguintes versos do canto V: ‘numa mão a pena e noutra a lança’.

Quem é aqui o alter-ego de Camões? Júlio César. Basta ir ver a estância 96 do canto V. E não é difícil percebermos que Camões tem gosto em se identificar com a figura de Júlio César, pois também César era um autor de quem se dizia que salvara os seus escritos a nado.

No entanto, este mesmo Júlio César também era referido nas biografias antigas romanas, conhecidas na época de Camões, como homem de todas as mulheres e mulher de todos os homens.

Juntemos a isto o canto III d'Os Lusíadas, em que Camões se compara a Orfeu, por sua vez explicitamente referido no canto X das ‘Metamorfoses’ de Ovídio como autor (em latim ‘auctor’) de amores homossexuais.

Dizem que, nas sociedades repressivas como era o Portugal de Camões dominado pela Inquisição, quanto mais inteligentes os textos menos os censores os vão entender. Felizmente, o poema de Camões é tão inteligente que, em 2017, ainda estamos a tentar entendê-lo.”

Frederico Lourenço, Coimbra, 2017-10-11

Disponível aqui..., acedido em 11/11/2024

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