Mas
a Fama, trombeta de obras tais,
Lhe
deu no Mundo nomes tão estranhos
De
Deuses, Semideuses, Imortais,
Indígetes,
Heróicos e de Magnos.
Por
isso, ó vós que as famas estimais,
Se
quiserdes no mundo ser tamanhos,
Despertai
já do sono do ócio ignavo,
Que
o ânimo, de livre, faz escravo.
E
ponde na cobiça um freio duro,
E
na ambição também, que indignamente
Tomais
mil vezes, e no torpe e escuro
Vício
da tirania infame e urgente;
Porque
essas honras vãs, esse ouro puro,
Verdadeiro
valor não dão à gente:
Milhor
é merecê-los sem os ter,
Que
possuí-los sem os merecer.
[…] E
fareis claro o Rei que tanto amais,
Agora
cos conselhos bem cuidados,
Agora
co as espadas, que imortais
Vos
farão, como os vossos já passados.
Impossibilidades
não façais,
Que
quem quis, sempre pôde; e numerados
Sereis
entre os Heróis esclarecidos
E
nesta «Ilha de Vénus» recebidos.
Luís de
Camões, Os Lusíadas, IX, 92-93; 95.
Depois de várias dificuldades
em Calecute, os Portugueses iniciam a viagem de regresso à Pátria. Estamos em
finais de julho de 1498.
É então que Vénus
decide dar um prémio “bem merecido” aos corajosos navegadores pelos “trabalhos tão longos” (IX, 88), “Por mares nunca de antes
navegados” (I, 1). Fá-los
aportar a uma ilha paradisíaca, uma “ínsula divina” (IX, 21), povoada de ninfas amorosas que lhes deleitam
os sentidos. Numa atitude estudada de sedução, as divindades fingem assustar-se
com a presença dos marinheiros, mas logo se rendem aos encantos do amor.
Pintura de António Fernandes – Ilha dos Amores (Salão Camoniano) |
Esta
ilha “alegre e deleitosa”
(IX, 54) não existe na realidade, mas na imaginação, no sonho que
dá sentido à vida. O sonho que permite atingir a plenitude da Beleza, da
Harmonia, do Amor, da Realização.
A
grandeza épica da viagem também se mede pela grandeza do prémio, e esse foi o
da imortalidade, simbolicamente representada na união homens-ninfas, fazendo-se juras de
“eterna companhia, / Em vida e morte, de honra e alegria” (IX, 84). Quer dizer, os
Portugueses deixam de ser simples mortais, transcendem a condição humana e
recebem os dotes de uma experiência divina – são heróis: “[…] esforço e
arte / Divinos os fizeram, sendo humanos” (IX, 91).
É a energia criativa
do Amor que conduz os Portugueses à imortalidade. Não um amor qualquer, mas o
Amor desinteressado, o Amor à pátria, o Amor ao dever, a capacidade de suportar
todas as dificuldades, todos os sacrifícios. É esse Amor que liberta da
"lei da morte".
Na Ilha dos
Amores, temos a glorificação do “peito ilustre lusitano”, a vitória do génio
humano e ainda a embriaguez dos sentidos. A Ilha é também a manifestação da Beleza de um mundo ideal, onde todos os
que merecem são compensados pelo seu esforço, um mundo onde, lado a lado, se
conjuga o terreno e o divino, o carnal e o espiritual. Ela é o restabelecimento da
Harmonia, de modo que a consagração e a transfiguração mítica dos heróis
apontam para a recolocação do Amor como centro da Harmonia e do Mundo.
Este regresso ao
paraíso perdido remete, naturalmente, para a questão da autodeterminação humana
e do orgulho humanista. A deificação dos homens elevados ao estatuto de deuses
é uma ideia adequada ao impulso do Renascimento, que assistiu a um importante
avanço no domínio do planeta por parte do Homem.
Assumindo a sua missão
humanista, o
Poeta,
de forma pedagógica, não perde ainda o ensejo de tecer considerações sobre a forma de alcançar a Fama, ao exaltar o perfil dos que
podem ser “nesta ‘Ilha de Vénus’ recebidos”, reiterando a importância de
valores como a justiça, a coragem, o amor à Pátria, a lealdade ao Rei:
“Por isso, ó vós que as famas estimais,
Se quiserdes no mundo ser tamanhos,
Despertai já do sono do ócio ignavo,
Que o ânimo, de livre, faz escravo.
E ponde na cobiça um freio duro,
E na ambição também, que indignamente
Tomais mil vezes, e no torpe e escuro
Vício da tirania infame e urgente;”
Tudo isto porque tais
honrarias vãs não dão valor a ninguém: melhor é merecê-las sem as ter do que
possuí-las sem as merecer…
A Organização
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