Os medos do Gigante
Adamastor…
(…)
Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso,
Que
pareceu sair do mar profundo.
Arrepiam-se
as carnes e o cabelo,
A
mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo!
E
disse: – «Ó gente ousada, mais que quantas
No
mundo cometeram grandes cousas,
Tu,
que por guerras cruas, tais e tantas,
E
por trabalhos vãos nunca repousas,
Pois
os vedados términos quebrantas
E
navegar meus longos mares ousas,
Que
eu tanto tempo há já que guardo e tenho,
Nunca
arados d'estranho ou próprio lenho:
(…)
Ouve os danos de mi que apercebidos
Estão
a teu sobejo atrevimento,
Por
todo o largo mar e pola terra
Que
inda hás de sojugar com dura guerra.
(…)
Aqui espero tomar, se não me engano,
De
quem me descobriu suma vingança;
E
não se acabará só nisto o dano
De
vossa pertinace confiança:
Antes,
em vossas naus vereis, cada ano,
Se
é verdade o que meu juízo alcança,
Naufrágios,
perdições de toda sorte,
Que
o menor mal de todos seja a morte!»
Luís de Camões, Os Lusíadas, V, 40-42; 44.
Ao
longo do canto V d’Os Lusíadas, Vasco da Gama, em Melinde, conta – ou melhor,
canta – ao rei local como foi a viagem, desde
Belém, no Restelo, de onde a armada partira, a 8 de julho de 1497.
Entre
as ocorrências dignas de registo, sobressai o famoso episódio do Gigante
Adamastor, que ocupa as estâncias 37-60.
Segundo
o narrador, este monstro aterrador “de disforme e grandíssima estatura”, que
dizia que aqueles mares lhe pertenciam e que quem se atrevesse a entrar neles
seria destruído, apareceu-lhes junto ao Cabo das Tormentas, depois chamado Cabo
da Boa Esperança.
João
de Barros e Fernão Lopes de Castanheda dizem que a armada passou o Cabo a 20 de
novembro, uma quarta-feira, “ao meio-dia, (…) com vento à popa”, surgindo,
então, a aparição do Adamastor, notável criação camoniana que simboliza o
terror do mundo desconhecido.
Face
à coragem, à valentia, ao “sobejo atrevimento” dos Portugueses, o monstro
anuncia-lhes “suma vingança”:
“(…)
em vossas naus vereis, cada ano,
Se
é verdade o que meu juízo alcança,
Naufrágios,
perdições de toda sorte,
Que
o menor mal de todos seja a morte!”
É a
profecia ameaçadora da nossa futura História Trágico-Marítima…
![]() |
Adamastor no Miradouro de Santa Catarina, em Lisboa. |
Adamastor
tem, no entanto, uma vulnerabilidade… Vasco da Gama põe-se de pé e pergunta-lhe:
“Quem és tu?”. Chocado, o monstro, “dando um espantoso e grande brado”, conta,
então, a sua triste história de amor e traição com uma deusa: Júpiter havia-o
transformado num penhasco enorme – o “remoto Cabo” – por amar Thétis!
Interessante
é ainda facto de este episódio ter ressonâncias autobiográficas e remeter para
os tempos da juventude de Camões, quando esteve desterrado em Ceuta, onde
perdeu o olho direito.
Segundo
vários autores, através do Adamastor, o Poeta dá-nos “informações de que
pertenceu à armada do estreito de Gibraltar”. Quando o monstro confidencia ao
Gama “[ter sido] capitão do mar, por onde andava / A armada de Neptuno, que eu
buscava” (V, 51), está “a dizer-lhe que servira na armada do estreito de
Gibraltar, aquela que permanentemente vigiava ou buscava a dita armada de
Neptuno, nome por que era conhecida a esquadra turca”.
“Na
realidade – conclui Isabel Rio Novo, a quem estamos a citar –, os biógrafos e
comentadores antigos põem Camões a servir nessa armada, estacionando em terra,
nos intervalos das missões”.
Seja
como for, para a posteridade fica o Adamastor, representante dos medos, mas, também,
símbolo da capacidade para ultrapassar obstáculos, enaltecendo o herói.
Já
no século XX, Fernando Pessoa, na obra Mensagem, recria a figura sob a forma
do Mostrengo. E o Adamastor continua a inspirar artistas como, por exemplo, A
Garota Não e Peculiar.
“Medo, que me corres no corpo, / Que
me matas os sonhos, / Que me tentas calar”… Vamos ouvir a canção “Adamastor”: letra e música de João Nicolau Quintela, com interpretação de Peculiar.
Fonte:
Isabel Rio Novo, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte – Biografia de Luís Vaz de
Camões, Lisboa, Contraponto, 2024, p. 182.
A Organização
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